sexta-feira, 9 de novembro de 2012

"Enem faz a mesma pergunta oito vezes"



RIO - Após o Ministério da Educação (MEC) divulgar o gabarito do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) sem anular uma questão sequer, apesar das queixas de colégios e cursinhos sobre alguns enunciados, professores agora criticam a prova de Linguagens e Códigos do processo de seleção que aconteceu no último fim de semana. Docentes dos ensinos médio e superior dizem que certas questões mostram uma preocupação excessiva em defender o uso oral e coloquial da língua em detrimento da norma culta.

Mestre em Literatura pela Universidade de Sorbonne (Paris III), a professora Regina Carvalho, que dá aulas de Língua Portuguesa no Colégio Santo Inácio, demonstra preocupação com o excesso desse conteúdo na prova.Em uma análise do exame, O GLOBO identificou pelo menos oito em 45 questões que exemplificam o assunto (uma delas na prova de inglês). Num enunciado, o texto de referência foi redigido com marcas orais características da análise do discurso, conteúdo específico de cursos de Letras e Comunicação: “Eu gostava muito de passeá...saí com as minhas colegas...brincá na porta di casa di vôlei...andá de patins...bicicleta...quando eu levava um tombo ou outro ... eu era a ::... a palhaça da turma ... ((risos))...”. O parágrafo é atribuído a A.P.S., mulher de 38 anos, que estaria no ensino fundamental.
— Há um desequilíbrio e um foco exagerado na linguagem coloquial. É uma ideologia que permeia a prova. Há uma indução subliminar. Acho problemático porque são muitas questões sobre o mesmo assunto. Do ponto de vista pedagógico, não se deve cobrar um mesmo assunto com tanta insistência. Do ponto de vista gramatical, nada é pedido praticamente. É uma contradição, porque na hora de fazer a redação, os professores cobram a norma culta dos estudantes e se agarram a ela para justificar a correção— critica Regina.
A professora chama a atenção para outras questões em que escritores consagrados, como Manoel de Barros e Rubem Alves, mencionam palavras e expressões que, mesmo inadequadas na norma culta, trariam mais poesia ao texto. Num trecho de “Cabeludinho”, de Barros, o uso de “voltou de ateu”, “disilimina esse” e “eu não sei a ler” é justificado na resposta como “a valorização da dimensão lúdica e poética presente nos usos coloquiais da linguagem”.
Já em “Mais badulaques”, Alves cita um amigo “paladino da língua portuguesa, que se deu ao trabalho de fazer um xerox da página 827 do dicionário” para provar o uso correto da palavra “varrição”, e não “varreção”, como o autor usaria. Para Regina Carvalho, a lógica de legitimar o uso coloquial por meio de autores consagrados é similar à defesa do polêmico livro “Por uma vida melhor”, distribuído pelo Ministério da Educação no Programa Nacional do Livro Didático, que contém frases com construções como “nós pega o peixe”. No ano passado, a publicação gerou uma controvérsia que opôs o MEC a professores críticos dessa propagação.
— Não é mostrar a fala coloquial em qualquer lugar, mas na voz de poetas e escritores consagrados, quase como que um modelo. Há livros maravilhosos didáticos que não são aceitos. Se isso é uma política intencional do MEC, não sei, mas desconfio que sim — avalia Regina.
Opinião semelhante tem o professor Claudio Cezar Henriques, titular do Instituto de Letras da Uerj.
— É lamentável que provas desse tipo deem tanto destaque a textos que mostram usos populares ou regionais de nossa língua. Minha crítica é pedagógica e tem a ver com a seguinte pergunta: as universidades querem alunos que tenham capacidade para ler e escrever textos acadêmicos e científicos ou querem alunos que saibam reconhecer variedades linguísticas? — questionou Henriques.
Para o professor, “questões e enunciados rigorosamente em língua padrão fazem par com textos bem ‘camaradas’ quanto a isso”.
— Para mim, isso é desperdício de tempo ou — pior — demagogia linguística. Um humorista certamente diria que a banca do Enem está ‘tipo bolada nessas quebradas de perguntar umas paradas pra galera’ — ele ironiza.
Mas nem todo mundo concorda com eles. Para o linguista Marcos Bagno, não há oposição entre ‘uso oral e informal’ e ‘norma culta’: uma manifestação culta, falada ou escrita, pode ser perfeitamente informal (veja texto abaixo).

Na redação, deve ser usada norma padrão

De acordo com o MEC, o Enem obedece a uma matriz de referência a qual contempla uma lista de conteúdos, em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais. Segundo o órgão, a prova de Linguagens e Códigos apresenta questões que exigem do participante uma reflexão sobre as normas e usos da língua portuguesa, contemplando os processos de aprendizagens da língua materna nos quais se inserem a leitura e a escrita.
“O pressuposto é o de que todo uso gramatical e linguístico é contextualizado em práticas de linguagem que podem ser orais, escritas, formais, informais e literárias, entendendo que todas essas formas de uso da língua são autênticas e legítimas”, diz a nota do MEC.
O texto enviado pelo ministério ressalta ainda que “o participante durante a resolução das questões tem condições de fazer julgamentos sobre esses diversos usos e normas, a partir de diferentes gêneros textuais, além de ser obrigado a fazer uso exclusivo da norma padrão da língua portuguesa na produção de sua redação”.

‘A ignorância sempre tem salvação’

Uma questão do Enem reproduz parte de uma entrevista com o linguista Marcos Bagno. Autor da “Gramática pedagógica do português brasileiro" e de “Preconceito linguístico”, ele é professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. O enunciado da prova diz que “o autor defende o uso de formas linguísticas coloquiais e faz uso da norma padrão em toda a extensão do texto”. O GLOBO procurou o professor para falar sobre o assunto. Questionado se não havia uma preocupação excessiva da prova em defender o uso oral e informal da língua em detrimento da norma culta e se a sociolinguística não estaria se sobrepondo à gramática, Bagno reagiu assim à mesma pergunta feita a outros professores:
— Sua pergunta não faz o menor sentido. Não existe essa oposição que você insinua entre "sociolinguística" e "gramática". Também não existe antonímia entre "uso oral e informal" e "norma culta": uma manifestação culta, falada ou escrita, pode ser perfeitamente informal. Como sempre, vocês, jornalistas, sobretudo da mídia conservadora como O GLOBO, procuram apenas justificativas para perpetuar seus pontos de vista reacionários sobre tudo, incluindo o ensino. Quando vão tratar de linguagem, a falta de preparo se revela de maneira patente. Digo falta de preparo porque prefiro acreditar nela a acreditar que essas posturas são movidas por má-fé. A ignorância sempre tem salvação — escreveu Bagno, por e-mail.
O GLOBO procurou o professor justamente para ter na reportagem o ponto de vista de um defensor da ênfase na linguagem coloquial. Logo após enviar a resposta, o acadêmico, um dos maiores defensores do uso do polêmico livro “Por uma vida melhor”, publicou o diálogo com o repórter no Facebook, gabando-se da postura ofensiva: “A criatura está sossegada em casa quando recebe um email de um jornalista de O GLOBO com uma pergunta tão imbecil que só merece uma resposta irônica. Duvido que vá publicar, mas dou aqui de graça para vocês se divertirem. Eu é que não vou colaborar para falar mal do Enem”.



Publicado por: LAURO NETO 
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/vestibular/enem-faz-mesma-pergunta-oito-vezes-6679643#ixzz2BmMo6ezX
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